O clima tranqüilo de fim de tarde do bairro do Tororó, em Salvador, é quase imbatível. Na pequena rua que abriga uma série de repúblicas estudantis de municípios do interior do estado, apenas um sujeito é capaz de desafiar a paz interiorana que os estudantes parecem ter trazido consigo de suas cidades. Do lado de fora da república de Ipirá, posicionado sob uma das janelas da casa, Angelino Bispo, de 45 anos, alterna fortes batidas na madeira do parapeito com rápidas agachadas para se esconder daqueles que pretende pirraçar. Esse é o retrato da convivência dele com os 32 estudantes ipiraenses.

Angelino mora e trabalha como cozinheiro da república há onze anos, mas não se considera um funcionário. “Aqui somos amigos, nos ajudamos mutuamente. Se me chamar de empregado leva tapa” brinca, enquanto tenta controlar a leve gagueira. Homossexual assumido e desempenhando atividades tradicionalmente femininas, Angelino garante nunca ter sofrido nenhum tipo de preconceito, pelo menos diretamente. “O preconceito a gente sabe que existe, mas nunca me atingiu não”, afirma. Rodrigo Costa, morador da república há quatro anos, admite ter sentido certo desconforto quando o conheceu, mas logo a sensação se desfez. “Com a convivência nós superamos os preconceitos. Ele se preocupa muito conosco, é como uma segunda mãe”, completa. A única ressalva que os moradores fazem em relação a Angelino é que ele costuma favorecer mais aos homens do que às mulheres da casa.

Noutra parte da cidade, antes de se tornar o “faz tudo” da casa de Maurício Tavares, professor de comunicação da UFBA, Paulo Cavalcanti, 36 anos, trabalhou num açougue, numa copiadora e como office boy. Ele aprendeu a cozinhar no restaurante do avô, onde também fazia serviços de limpeza. Com dificuldades em arrumar emprego, Paulo aceitou o convite de Maurício para trabalhar em sua casa. Hoje, além das atividades domésticas que realiza para professor, ele ainda trabalha como diarista numa outra residência.

Assim como Angelino, Paulo não tem grandes reclamações a fazer quanto à discriminação devido ao seu trabalho, mas admite ter sentido certa estranheza quando começou a desempenhar atividades domésticas. Já Maurício afirma estar satisfeito em ter um homem trabalhando em casa. “Os homens têm mais habilidades do que as mulheres nos serviços mecânicos. E além de cozinhar bem, ele sabe consertar aparelhos elétricos, já pintou minha casa mediante pagamento extra”, completa. Tanto Paulo quanto Angelino acreditam que, apesar da resistência que ainda existe em empregar homens para trabalhos domésticos, há a possibilidade de expansão masculina sobre as atividades ainda tipicamente femininas.

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Bruno Santana